A ocorrência de tornados no Brasil é mais frequente do que se pensava. Entre 1990 e 2011 foram registrados ao menos 205 desses fenômenos meteorológicos em território nacional, número que coloca o país entre aqueles que mais anotam eventos do tipo no mundo. São Paulo foi o Estado mais atingido pelos episódios nesse período, seguido pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Os dados estão revelados na tese de doutoramento do geógrafo Daniel Henrique Candido, defendida recentemente no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, sob a orientação da professora Lucí Hidalgo Nunes. Em seu trabalho, o pesquisador desenvolveu, com base nas informações reunidas, um modelo que confirma a existência de um padrão espacial e temporal desses acontecimentos em solo brasileiro. Ele também criou uma escala para medição dos danos causados pelos tornados, compatível com as estruturas existentes no Brasil.
O levantamento realizado por Daniel se baseou em uma série de fontes, entre elas pesquisas científicas, relatos, fotos, vídeos e notícias de jornais. “Ou seja, foram considerados somente os tornados efetivamente registrados. É possível que outros tenham ocorrido no período, mas que não foram vistos ou não causaram danos significativos, o que pode ter feito com que fossem confundidos, por exemplo, com uma simples ventania”, observa o geógrafo. Com base nos dados obtidos, o pesquisador empregou uma técnica de interpolação com o auxílio de ferramentas de geoprocessamento para promover a distribuição dos episódios pelo território nacional. Ao proceder dessa forma, ele identificou a existência de um padrão espacial e temporal para a ocorrência dos fenômenos.
Segundo Daniel, o resultado foi surpreendente. “Inicialmente, nós imaginávamos que Santa Catarina ou Rio Grande do Sul seriam os estados onde a incidência de tornados é mais frequente, devido às suas condições atmosféricas e de relevo. Entretanto, descobrimos que o líder nesse ranking é São Paulo”, diz. Baseado no mapeamento, o pesquisador estabeleceu um modelo do risco anual de ocorrência de tornados no país, cuja escala vai de abaixo de 1% a acima de 25%. Em São Paulo, as cidades de Campinas, Indaiatuba e Itu, além da faixa litorânea, apresentam maior possibilidade de registrar novos tornados.
Não por acaso, lembra a professora Lucí, os três municípios paulistas têm histórico relacionado a ocorrências de fortes tornados. O que atingiu Itu, em 30 se setembro de 1991, por exemplo, é apontado como um dos mais violentos já registrados no país. Na ocasião, o fenômeno causou 15 mortes e destruiu casas, plantações e torres de transmissão de energia. “Até a ocorrência desse tornado, a ciência não considerava que esse tipo de episódio pudesse ocorrer no Brasil. Foi a partir dele que foram iniciadas as pesquisas sobre o assunto”, informa Daniel.
Em 28 de novembro de 1995, um episódio foi registrado entre Paulínia e Jaguariúna. Dez anos depois, em maio de 2005, foi a vez de Indaiatuba ser atingida por um tornado. Fábricas, prédios municipais e pelo menos 400 casas foram destruídos por ventos que atingiram cerca de 250 km/h. A prefeitura da cidade foi obrigada a declarar estado de calamidade pública por causa da devastação deixada pelo temporal. O fenômeno foi filmado por uma das câmeras de uma concessionária de rodovia, o que fez com que as imagens virassem hit no YouTube.
No Rio Grande do Sul, conforme o modelo proposto pelo autor da tese, as áreas mais suscetíveis à ocorrência de tornados são a faixa litorânea e as imediações do lago Guaíba, com probabilidade em torno dos 25% ao ano. Em Santa Catarina, as regiões mais propensas à formação do fenômeno estão localizadas também no litoral e no extremo sul do Estado, mais ou menos nos mesmos patamares. Daniel esclarece que o modelo levou em conta somente os estados localizados na porção meridional do território brasileiro, por estes disporem de maior número de informações, maior concentração de eventos e reunir condições atmosféricas e de relevo que concorrem para o surgimento dos fenômenos. “Não consideramos os estados das regiões Norte e Nordeste no estudo justamente porque eles não reúnem essas características”, esclarece o autor da tese.
Além de estabelecer um padrão espacial e temporal e de desenvolver um modelo de risco para a ocorrência de tornados no Brasil, Daniel também criou uma tabela para a medição de ventos, voltada às características do país. O pesquisador explica que existem outras escalas do gênero, como a Fujita, muito utilizada em todo o mundo, que em termos práticos vai de 0 a 5. A intensidade dos ventos é estimada com base nos estragos que eles causam. “Esta escala é eficiente, mas ela leva em conta as estruturas e construções presentes nos Estados Unidos. Assim, ela determina que os ventos de um tornado alcançaram dada intensidade se destruíram, por exemplo, trailers. Ora, aqui no Brasil nós não temos parques de trailers como lá. Aqui, temos favelas e barracos, que apresentam uma vulnerabilidade diferente”, esclarece.
O mesmo ocorre, conforme o geógrafo, com uma escala europeia denominada Torro, que vai de 0 a 11. “A Europa também tem construções diferentes das nossas. Lá, são levadas em conta casas de pedras que sofrem danos por causa dos tornados. Aqui, esse tipo de edificação é raro. Por isso, nós resolvemos criar uma ferramenta voltada às especificidades brasileiras, que batizamos de Escala Brasileira de Ventos (Ebrav). Ela vai de 0 a 7. O primeiro estágio (zero) da escala equivale a ventos de até 50 km/h, intensidade que não apresenta potencial de danos. O último (sete) classifica ventos acima de 260 km/h, capazes de provocar destruição generalizada de instalações urbanas”, detalha Daniel. A escala proposta pode ser utilizada na avaliação de qualquer ocorrência relacionada a ação de ventos, independente de ter se tratado ou não de um tornado.
De acordo com a professora Lucí, o trabalho realizado pelo seu orientado se reveste de duas importâncias fundamentais. Primeiro, traz novos dados acerca da ocorrência de tornados no país, o que contribui para que a ciência nacional conheça mais sobre esses fenômenos. Segundo, os dados podem servir para ajudar na tomada de decisão tanto no que toca à formulação de políticas públicas quanto no estabelecimento de planos de contingência voltados à preservação de vidas humanas. “Sabendo, por exemplo, que uma determinada área é mais suscetível à ocorrência de tornados, os planos diretores dos municípios podem determinar que tipos de ocupação e de construção são mais recomendáveis para o local. Essa informação ainda não é levada em conta no país, mas seria desejável que fosse, pois agora sabemos que existe um padrão espacial e temporal para a ocorrência desse fenômeno”, pondera.
A docente do IG lembra, ainda, que uma atitude importante em relação aos tornados é avisar a população para que ela deixe a área em vias de ser atingida. Aqui, porém, ela faz uma observação preocupante. De acordo com ela, esses fenômenos são diferentes dos furacões, que têm duração prolongada e que percorrem extensas áreas do planeta. “Isso faz com que as pessoas possam ser informadas e orientadas a se proteger até com um ou dois dias de antecedência. Em relação aos tornados, que duram poucos minutos e percorrem alguns poucos quilômetros, esse alerta normalmente é dado com até 30 minutos de antecedência. Portanto, é preciso que a ação seja rápida e eficiente. Outro fator complicador em relação aos alertas é a carência de radares do tipo Doppler no país, os únicos capazes de identificar os tornados. Sem eles, ficamos à mercê da natureza e limitados em relação à adoção de medidas que podem salvar vidas”, lamenta.
Tanto a população quanto veículos de comunicação e até mesmo instituições que não atuam na área das ciências atmosféricas costumam cometer equívocos em relação os tornados. De acordo com Daniel, tanto os tornados quanto ciclones, furações e tufões apresentam ventos rotacionais. A diferença entre eles está basicamente na escala. Enquanto o primeiro tem atuação mais restrita, os demais podem apresentar raios de milhares de quilômetros. Para a formação do tornado, detalha o pesquisador, é preciso que haja uma nuvem específica [cumulonimbus], de origem convectiva vinculada ao aquecimento do solo. Quando essa nuvem fica muito desenvolvida, começa a ocorrer grande turbulência no seu interior. Há, portanto, uma movimentação mais intensa do ar.
Como essa nuvem atinge altitudes de até 20 km, onde a temperatura alcança 80 graus negativos, há um resfriamento da sua parte superior. “Esse resfriamento irregular pode aumentar a convecção, possibilitando a formação de núcleos de baixa pressão dentro da nuvem. Nessas condições, o ar pode começar a girar em torno desse núcleo de baixa pressão, formando o funil que desce até o solo. Vale destacar que o tornado só pode ser classificado como tal se tocar o solo. Normalmente, os ventos atingem até 250 km/h, mas os ventos gerados por tornados mais intensos podem superar 300 km/h. Trata-se de um fenômeno que concentra grande energia em pouco tempo e que afeta uma área reduzida. As trombas d’água são fenômenos parecidos, que ocorrem, como o nome sugere, sobre corpos d’água, como represas ou oceanos”, define.
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